terça-feira, 8 de março de 2011

Meu medo de criança

Acabo de ler um texto do Carpinejar- "Assombrado pela vida", na revista Crescer. Me fez fazer relações que não esperava. Tinha um trecho que dizia assim- "Desse tempo, compreendi que adulto não soluciona o medo de criança, por querer terminar logo com o susto, dizer que não é nada, que é uma bobagem, que não vale sofrer à toa. Pai e mãe apenas aumentam o terror desprezando as perguntas e a cumplicidade. As crianças pretendem curtir o medo primeiro, desenvolver o suspense. O medo não é uma ameaça, é um modo de fazer amizades. Elas resolvem os pânicos falando deles. A terapia consiste em tão-somente partilhar medos. A gratuidade dos medos. O prazer dos medos. A delícia dos medos.
Um medo coletivo é melhor do que os medos individuais, castrados e reprimidos.
Exercitávamos a ansiedade com minúcia e fantasia. Às vezes contávamos histórias de terror à luz de velas somente para sair gritando. Às vezes alucinávamos em equipe.
Meu pavor sempre teve companhia para amadurecer."
Lendo isso- engraçado, num primeiro instante, não lembrei da minha infância- lembrei do meu "agora". Lembrei de uma amizade, em especial, de hoje- não das de anos atrás- nem das histórias de anos atrás. Foi tudo, por instantes, "de agora". E, de repente, me veio a sensação de ter pulado os papéis que se assume na infância e estar assumindo o papel, agora, já, de quem cuida dela e tem medo de machucá-la. Inacreditável: a vida me pega em umas, em várias. Vou contar o que me veio logo que li:
Muito caminhei pela rua, estive em lugares... escutando os medos de uma amiga minha. Talvez não uma só, talvez outras também. Mas nesse instante- só uma me veio. Muito fiz isso. Só que esses medos eram muito semelhantes aos medos das crianças que Carpinejar fala- e foi. Eram medos feitos pra sentir o medo, o suspense, pra se sentir mais na vida, pra sentir "aquela emoção". E muito fiquei escutando esses medos... Que não eram os medos de uma criança, mas eram os medos da criança- não- mais- criança que prolongava uma parte da infância vida a fora. Que prolongava esse ato de sentir medo, de sentir o suspense... e depois compartilhá-los, fazer amizades assim, laços assim. Lembrei disso, lembrei dessa minha amiga.
Achei muito interessante ter feito- já quando lia- essa relação...E depois, outras mais:
Fui lembrando de como não tive isso... Esses medos pra se compartilhar, esses medos "de grupo", esses medos de infância. Ou, talvez, não bem isso: tive, sim, em algum momento, os medos. Mas toda falta de compartilhamento me fez deixar eles bem antes... pelo caminho.
E... Incrível como essa minha sensação de falta de infância me deu uma estima imensa pela própria infância. Me deu um cuidado, um medo de machucar, de decepcionar, de quebrar algum sonho.
Não brincava de boneca, nem de casinha, ou sei lá quais as brincadeiras que se brincava. Entre as minhas lembranças mais remotas... acho que estão os meus oito, nove anos, e uma escolinha que montei aqui nos fundos de casa pra ajudar as crianças mais novas, ou da minha idade, com os temas. Que foi quando, sem dúvida, comecei a desenvolver essa minha criatividade pra dinâmicas ou, até mesmo, uma coragem, de vez em quando, pra assumir uns grupos. E foi, também, quando, sem dúvida, comecei a desenvolver esse meu cuidado...
Tinha oito anos, mal acredito nisso. Lembro que o marido da minha vó fez cadeirinhas e mesas... várias... pra gente. Eram umas seis, oito crianças... e eu. Eu... e o meu cuidado. Eu e a minha felicidade de poder ajudar. Eu e a minha infância cheia de cuidados com a própria infância.
E daí lembro da Ana dizendo que tenho ainda a mesma "carinha". Olha... acho que tenho mesmo. Mas, também, mais! Não foi agora que comecei a assumir o papel de quem, volta e meia, cuida, como disse- e, sim, lá.
Até o último ano, sustentei uma implicância, uma certa relutância em aceitar a infância que tive... porque ainda era muito presa a ideia do "não ter". Aquela ideia de infância, brincadeiras, não tinha, realmente não tinha (não tenho). Então simplesmente pensava nela como algo "inexistente". Agora, hoje, não: olho e vejo não só uma infância que, sim, tive- do meu jeito, mas tive- mas também algo que me marcou profundamente, que muito me deu. Minha vida- até uns tempos atrás- era uma espécie de placas que se separaram. E pular de uma pra outra- meu Deus, que sacrifício. Hoje- felizmente e mais do que isso- posso dizer que pular de uma pra outra tem sido fabuloso- e os encontros, no outro lado, ainda mais.
A vida nos traz uma grandeza em encontros que volta e meia me tiram as palavras. Sem contar quando a vida traz a nós... nós mesmos.
Lembrar daquela minha amiga que falei- linda, maravilhosa- me fez ir da rua que caminho com ela aos fundos da minha casa. Ler as palavras do Carpinejar- de uma sensibilidade espetacular- me fez ir da guria que sou à criança que fui. E daí olho pra isso e penso: como não ter cuidado com a infância? Esse pedacinho de tempo que foge de uma hora pra outra, mas na lembrança se estende eterno, muito nos faz. Daí olho pra isso e penso: será que esse meu medo, até então escondido -e agora compartilhado- de que não haja cuidado, não é como um medo de criança... da minha criança que ainda sonha com o cuidado? Que ainda espera que digam que há cuidado?
Daí olho pra isso, surpresa, e penso: quanta criança ficou em mim, que tão pouco criança foi. Quanto ficou, também...

p.s.: lembrei de uma frase minha de anos agora: "vocês não precisam ter medo da prof". Disse isso aos sete, aos oito, aos nove, aos dez. Minha liderança sempre se deu de cuidado. E não só por outros, mas por mim também. Dizia pra nos proteger, nos acalmar! Também tinha medo, só não me ensinaram a compartilhar. Mas tinha!
É que ser criança foi mais difícil do que não ser pra mim.


R.A 08/03/11

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